O debate sobre segurança pública no Brasil precisa sair do campo das promessas e discursos genéricos e encarar a realidade. Em muitas regiões do país, o problema não é apenas o aumento da criminalidade. É a presença de verdadeiros poderes paralelos que controlam territórios, impõem suas próprias leis e cobram “taxas” da população.
Esse “silêncio que parece calma, mas é medo”, como relatado por uma moradora de área dominada por milícias (MATTOS, 2023), não significa resignação. Ao contrário do discurso dominante em certos círculos políticos e acadêmicos, a população das favelas não é, em regra, contrária a ações contundentes do Estado contra o crime organizado. Segundo levantamento da AtlasIntel, a aprovação da megaoperação realizada no Complexo do Alemão e da Penha, na semana passda, chegou a 62% entre a população geral da cidade do Rio de Janeiro — e foi ainda mais elevada entre os moradores de favelas, superando a média da população urbana (ATLASINTEL, 2025). Esses dados desafiam a tese simplista de que operações policiais são sempre prejudiciais aos moradores dessas comunidades. Na realidade, muitos deles anseiam por presença efetiva e legítima do Estado, capaz de romper o ciclo de medo e controle armado.
Esse medo tem nome: insurgência criminal. Grupos armados não só cometem crimes, mas ocupam espaços que deveriam ser do Estado. Criam suas regras, punem e cobram como se fossem governo. Durante a pandemia, algumas facções decretaram lockdowns em seus territórios (SULLIVAN; BUNKER, 2022). Nesses lugares, o Estado não está apenas ausente: foi substituído.
Diante disso, é preciso pensar uma resposta institucional forte. A PEC 18/2025 é apresentada como esse caminho. Mas há incoerências graves entre o discurso oficial e as medidas em curso. Por ocasião da recente operação policial contra o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, o Ministro da Justiça afirmou que “a responsabilidade é, sim, exclusivamente dos governadores no que diz respeito à segurança pública, à segurança dos respectivos Estados” (LEWANDOWSKI, 2025). Essa declaração contradiz diretamente o art. 144 da Constituição Federal, elenca como responsáveis pela segurança pública instituições federais e estaduais; logo, a sua promoção é dever do Estado e responsabilidade comum da União, Estados, DF e até mesmo dos Municípios.
Mais grave: essa fala também contradiz o próprio espírito da PEC 18, apresentada pelo Governo Federal, que tem sido invocada como instrumento de fortalecimento da União -especialmente da Polícia Federal – no combate ao crime organizado. O que se vê na prática é o contrário da integração. Nos últimos meses, o governo tem esvaziado o papel da inteligência da Polícia Rodoviária Federal no combate ao crime. Também proibiu a participação de seus agentes em grupos de atuação integrada, como os GAECOs (CNN BRASIL, 2025).
Ou seja: enquanto o governo fala em cooperação, na prática toma medidas que isolam instituições e desarticulam esforços integrados. Isso enfraquece o combate ao crime e contraria a lógica constitucional.
1. O problema da exclusividade investigativa
O texto atual da PEC reforça a dissonância entre discurso e ações, pelo Governo Federal. A proposta inclui uma mudança no art. 144 da Constituição para tornar a investigação de quaisquer crimes exclusividade da Polícia Federal e polícias civis. Pode parecer detalhe, mas isso cria dois problemas: primeiro, impede atuações de órgãos policiais com grande relevância em regiões de fronteiras, crimes ambientais e situações de flagrante. Segundo, ignora o papel legal e constitucional de órgãos como o Ministério Público, a Receita Federal, o COAF, o Ibama e a CGU, que sempre investigaram.
O STF já decidiu que o Ministério Público pode investigar, como reafirmado no julgamento da ADI 2943 (STF, 2024). Na ocasião, afirmou-se uma vez mais que promotores e procuradores podem conduzir investigações sem a participação de delegados, em procedimentos próprios nos quais devem ser respeitados todos os direitos e garantias da pessoa investigada e dos advogados que atuam em sua defesa. Criar agora uma regra constitucional que contraria isso é dar um passo atrás.
Investigação criminal não é privilégio de uma única instituição. Deve ser uma tarefa compartilhada, com regras claras, controles legais e foco em resultados. Isso deveria estar claro para o Ministério da Justiça, mas o texto original da PEC revela que anseios corporativos têm sido postos na frente da eficiência da investigação.
2. O que é ciclo completo de polícia e por que isso importa
O caminho deve ser o oposto do propalado pela PEC. A discussão é uma oportunidade relevante de melhoria do sistema de investigação criminal do Brasil, com a adoção do ciclo completo. O ciclo completo de polícia é o modelo em que a mesma força policial faz o patrulhamento e a investigação. Isso evita rupturas, ganha tempo e melhora resultados. Países como França, Alemanha, Espanha e EUA adotam esse modelo.
A atuação da PRF nos últimos anos dá sinais de como o modelo pode ser exitoso. Desde 2018, quando passou a usar mais inteligência no combate a crimes nas rodovias, a instituição aumentou em mais de 200% as apreensões de drogas e armas. Mas, após prender o suspeito, ela precisa entregar o caso para outra instituição. O conhecimento gerado na investigação se perde ou se fragmenta.
Se ao invés de limitar o poder de investigação às polícias federal e civis, a PEC permitisse que todas as demais instituições policiais investigassem (PRF e PMs, por exemplo), com supervisão do Ministério Público e controle judicial, daria mais eficiência ao sistema. A PEC poderia caminhar nessa direção. Mas está indo no sentido inverso.
Isso nos leva ao próximo passo, que é a questão da integração.
3. Integração não pode ser apenas discurso
O texto da PEC avança ao prever o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) na Constituição. Mas é preciso um passo adiante para incluir no texto constitucional a obrigação de cooperação não apenas entre polícias, mas também entre elas e Ministérios Públicos e órgãos de inteligência. Isso exige articulação permanente, com metas comuns, compartilhamento de informações e eliminação de barreiras corporativas.
Essa integração é uma exigência do Estado constitucional. Já está no art. 129, VII, que prevê o controle externo da atividade policial pelo MP. Mas precisamos ir além: transformar isso em prática concreta.
Conclusão
A PEC 18/2025 pode ser uma oportunidade histórica. Mas, para isso, precisa ser coerente com o que o próprio governo diz defender. O discurso de cooperação institucional não pode conviver com o esvaziamento de capacidades operacionais de instituições nem com restrições arbitrárias a atuações conjuntas.
Segurança pública não se faz com slogans. Exige a construção de um novo pacto republicano, baseado em integração, inteligência e responsabilidade compartilhada. A PEC precisa refletir isso no texto e na prática. Caso contrário, será apenas mais uma promessa vazia.
Em um momento em que o país enfrenta ameaças complexas à ordem pública e à legitimidade estatal, não podemos aceitar reformas constitucionais orientadas por lógicas corporativas ou soluções aparentes. A PEC 18/2025 exige leitura crítica, debate qualificado e comprometimento com os princípios republicanos. É dever de juristas, gestores públicos, parlamentares e da sociedade exercer vigilância ativa sobre seu conteúdo, rejeitando retrocessos e defendendo um modelo de segurança que una eficiência, inteligência e respeito às garantias constitucionais. O combate ao crime não pode ser usado como pretexto para fragmentar a institucionalidade ou concentrar poderes sem controle. O verdadeiro avanço é aquele que fortalece o Estado de Direito — e não o que o distorce.
Referências
ATLASINTEL. Megaoperação contra o crime organizado no Rio de Janeiro: opinião pública na cidade do Rio. Out. 2025. 10 p.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Polícia Federal. PF divulga balanço de resultados das ações de 2024. Brasília, 29 jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2025/01/pf-divulga-balanco-de-resultados-das-acoes-de-2024. Acesso em: 8 out. 2025.
BUENO, Samira; SAPORI, Luiz Flávio. Segurança pública e justiça criminal no Brasil: perspectivas para o século XXI. São Paulo: Editora Contexto, 2021. p. 115-116.
CNN BRASIL. PRF mantém suspensão de parcerias em operações contra crime organizado. 25 out. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/centro-oeste/df/prf-mantem-suspensao-de-parcerias-em-operacoes-contra-crime-organizado/. Acesso em: 30 out. 2025.
FANTÁSTICO. Drones-bomba no Rio: CV dominou tecnologia com ajuda de militar da Marinha, mostrou Fantástico. G1, Rio de Janeiro, 29 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2025/10/29/drones-bomba-no-rio-cv-dominou-tecnologia-com-ajuda-de-militar-da-marinha-mostrou-fantastico.ghtml. Acesso em: 30 out. 2025.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Follow the Products: fluxos ilícitos, financiamento e conexões da violência armada. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025. Disponível em: https://forumseguranca.org.br. Acesso em: 8 out. 2025.
LEWANDOWSKI, Ricardo. Declaração sobre responsabilidade dos estados. AgênciaGov, 25 out. 2025. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202510/lewandowski-diz-que-pedidos-do-rio-foram-atendidos-e-defende-pec-da-seguranca-publica. Acesso em: 30 out. 2025.
MATTOS, Vitor Abdala. Restrições impostas pela milícia no Rio vão de água a convívio social. Agência Brasil, 16 out. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br. Acesso em: 8 out. 2025.
SULLIVAN, John P.; BUNKER, Robert J. Criminal Insurgencies and Governance in Brazil. Xlibris US, 2022.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 2943. Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 02 maio 2024.
